terça-feira, 29 de outubro de 2013

Amei-me através de ti. Tela branca de cinema. Um corpo fraco, franzino, frio, feio. Amei-me.  Nada mais projectei que a mim e todas as coisas por mim apropriadas. Projectei em ti a poesia de Sophia. As músicas e os filmes de Paris. [Ai, Paris! Quando te conheci, vi que não eras nem música, nem filme. Cidade cinzenta, de velhice e betão. Uma tela cinzenta para a qual alguns projectam amor. Paris, tomara não ter sido necessário ouvir o fado numa das tuas janelas e projectar a nostalgia para um corpo inabitado.] Amei o sexo. O sexo que a mim ofereci, nunca a ti. Amei o Chico Buarque e o tinto. Os movimentos das danças que marcavam o ritmo daquilo que eu acreditava ser amor. Era amor - Narcísico.  Hoje és um corpo laxo desprovido de todos os prazeres. Um corpo frágil e inabitado. Extorqui de ti a Marguerite Duras e hoje apodero-me dela como se sempre tivesse sido minha. Hoje sou a pequena puta de Saigon. Já não és fado, nem bossa-nova. Não és vinho. Nem desejo. Sinto a ausência desse corpo fraco e feio. No silêncio e na ausência de ti, não há mais tela para mim.

domingo, 28 de abril de 2013



Resolvo solitariamente o jogo Marienband.
Quatro linhas:

Um fósforo. 
Três fósforos. 
Cinco fósforos. 
Sete fósforos. 

À vez retiro, de uma só linha, o número de fósforos que pretendo. O último jogador a retirar o último fósforo perde. Mão direita Vs. Mão esquerda. Consequência do jogo: amputação da mão derrotada. Converto o número de fósforos em combinações binárias. A soma das combinações binárias é par – uma combinação segura para uma das mãos. Combinação segura para a mão que for a segunda a jogar. Duelo: Hemisfério Esquerdo Vs. Hemisfério Direito. Impossível esconder da mão esquerda que o Hemisfério Esquerdo é responsável pelo raciocínio lógico e que controla a parte direita do corpo. Mão direita ou esquerda? Destro. Sou destro. A mão direita irá responsabilizar-se por um final sinistro, quando é ela a eleita, sempre? Abdico da lógica. Não, não permito que este desfecho seja fruto de uma luta desigual de mãos. O objectivo deixou de ser “Não ser o último a retirar o fósforo”. Retiro um fósforo com a mão direita. Outro fósforo com a mão esquerda. Objectivo: Preservar a mão o máximo de tempo possível. Retiro outro fósforo. Outra vez a mão esquerda a retirar. Mão direita. Mão esquerda. Mão direita. Mão esquerda. Mão direita. Mão esquerda. E assim é, fósforo a fósforo - ... Mão direita. Mão esquerda. Mão direita. Continuo a retirar fósforo a fósforo. Mão sinistra. Mão direita. Mão morta. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013


Escrever poesia para denunciar os erros do mundo é como ver através dos gladíolos, nascidos na Primavera, a imperfeição da terra. Tão grande contraste. O belo deambula pelas ruas, até no rosto daqueles a quem a fome comeu a carne e desgastou os ossos. Cresçam campos de papoilas, gladíolos e cravos. Que as gentes cegas pela fealdade sintam o cheiro das flores, espirrem com o pólen e tenham, diante dos olhos cegos, uma miragem de escarlate. A natureza que se encarregue de redesenhar os círculos perfeitos da utopia. Que surjam de novo os cravos nas espingardas, e a rouquidão no canto dos que acreditam. Que o Encoberto surja numa soalheira manhã de Abril para dizer que não é mais rei. Que se reguem as flores, e que o perfume do ar não seja mais o de Átropos a cortar o fio na hora do combate.


quinta-feira, 4 de abril de 2013

A carne está crua
despojada no cubo
que antes era nada.

Aves de rapina devoram-na
deixando restos de branco
nas paredes, que se tornam escarlate.

Saciadas com a carne
pousam noutro corpo.

O cubo - nada, como antes,
com paredes escarlate.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O homem vestido de preto foi a um funeral. Confundia-se entre tantos outros indivíduos vestidos da mesma cor. Na verdade, era um dos poucos sítios em que ele passava despercebido. Ele não conhecia o defunto. Tão pouco estava ali para partilhar a dor dos entes queridos. Tirou os óculos escuros do rosto. Sentou-se numa pedra branca de mármore e  pegou numa caneta e um caderno que tinha no bolso do casaco. Olhava para as pessoas e escrevia sobre elas. Abstraía-se das roupas e das cores, que não variavam muito - fatos e mais fatos pretos, uns mais curtos, outros mais compridos.  Reparava em cada movimento do corpo, na distância que unia e separava todos os que estavam no recinto. A distância dos corpos não era a mesma. Ele, mesmo assim, tentava escrever uma equação que traduzisse a distância dos corpos naquele espaço. O homem descrevia os rostos - a tensão dos músculos faciais. A quem pertenciam os rostos mais contraídos? Em alguns indivíduos, ele observava o momento anterior à queda de uma lágrima. Escrevia pormenorizadamente tudo o que acontecia durante a passagem da lágrima pelo rosto. Eram apenas lágrimas, por vezes acompanhadas de uns gemidos. Estas surgiam tanto em rostos contraídos, como nos menos tensos. Alguns rostos não evidenciavam sinais de ter caído uma lágrima. Em quase todos via-se suor a escorrer pela cara, resultado do casamento daquela tarde de sol com as vestes pretas. Ainda havia lugar para uns sorrisos tímidos. As lágrimas eram esquecidas pelo rosto. O suor teimava em permanecer nos rostos. A cerimónia terminou. Não havia mais ninguém no cemitério para além do homem vestido de preto. Ele rasgou as folhas do caderno. Limpou o suor da testa com as folhas e deixou-as junto daquele que acabara de partir para o mundo subterrâneo.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012


Ela disse que os poemas estavam suspensos na natureza. Fui até ao jardim e sentei-me. Para além do verde, o vazio. Algum vento, também. Os poemas estão na natureza, tal como os frutos nas árvores. Eu não tenho um pomar, nem sou agricultor. Onde estão os poemas imanentes? Muitos já foram colhidos até à data. Estou certo que muitos foram encontrados no mar. O peixe parece ser inesgotável. Continuo à procura do poema nesta mancha verde, ou então noutro lugar. Penso que mesmo num terreno árido existirão uns versos à espera de serem colhidos.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Era uma vez um homem com alzheimer. Sabia chorar. Lembrava-se das lágrimas derramadas enquanto era criança e ainda não tinha perdido as memórias das amarguras da vida. A mulher do homem morreu. Sim, ele lembrava-se da mulher. Não chorava porque não sabia da sua morte. Era uma vez um homem que  pensava que estava à espera que a mulher voltasse da mercearia. Ela morreu. Não se cansava de esperar. Cada momento de espera era singular e não tinha relação com os outros.

quarta-feira, 20 de junho de 2012



- Quand je parle une autre langue, je suis une autre personne. 
- Eu tenho uma única identidade, aquela que o português me permite expressar. Sinto uma barreira para me expressar noutras línguas. É como se tivesse ficado isolado aquando da destruição da Torre de Babel. 
- Il n'ya pas de barrières dans coeur. "Le langage est source de malentendus." 
- Sim, ainda bem que não falamos a mesma língua. Quando estou feliz sabes o que eu sinto. Quando faço dramas, apenas sabes que estou triste ou furioso. Não compreendes a minha mente complicada e por isso continuas aqui. Obrigado! 
- De rien! 
- Ah, consegues entender a minha gratidão?! 
- Quoi? Qu'est-ce que tu dis? 
- Rien, rien. Je suis content...

domingo, 10 de junho de 2012

Carta

(três folhas brancas. Ao fim da terceira, um post-it com uma mensagem.) 


Não tive tempo para codificar as minhas ideias.

Envio-te os meus pensamentos.


Cordialmente,

O homem vestido de preto.

sábado, 26 de maio de 2012

As trocas constituem processos em que são atribuídos valores aos objectos da permuta, de forma a torná-la mais justa. Que quantidade de algodão é necessária para que a troca seja considerada proveitosa para ambas as partes envolvidas? Desta forma, e acreditando que seriam necessárias grandes quantidades de algodão para que uma troca com um livro fosse considerada justa, é possível definir a troca como um processo incómodo, no que se refere ao peso e/ ou ao volume. O dinheiro aparece como intermediário numa troca, numa tentativa de quantificar algo incontável. Quer dizer, o aparecimento do dinheiro eliminou por completo um dos elementos da troca e deixou de ser intermediário, para assumir um papel central em qualquer troca. Trocar um carro por toneladas de bananas parece ser algo irreal e bizarro para a maioria das pessoas, no entanto, o mesmo dinheiro que é adquirido através da venda de um carro permite comprar toneladas de bananas. O dinheiro corresponde a uma quantia virtual e uma nota possui o mesmo valor material que uma folha de papel com as mesmas dimensões. Será um caderno uma multiplicação do valor material de uma nota? A virtualidade do dinheiro assume o seu expoente numa transferência bancária ou nos pagamentos por multibanco. Que quantidades materiais entram/ saem de uma conta bancária cada vez que se procede a uma transferência. O cartão multibanco continua a ser feito do mesmo material e se há algum desgaste, este resulta das sucessivas entradas e saídas nas caixas multibanco. Se existem ganhos ou perdas, para além das quantias virtuais, estes restringem-se aos valores morais. Se nos centrarmos na questão dos valores virtuais e materiais, o dinheiro constitui uma antagonia - a um menor valor material corresponde a um maior valor virtual e a um maior valor material corresponde a um menor valor material. Notas de baixo valor já deixaram há muito de existir. É frequente ver as mais pequenas moedas, mas feitas com os mais sólidos materiais, abandonadas no chão e ninguém se digna a levantá-las. Se não houvesse esta antagonia do dinheiro, as notas já teriam deixado de existir e os milionários não teriam lugar onde guardar tantas moedas.